Uma Viagem Gostosa

E a Sara, por onde andava agora? Desde que tinha saído do Rio e se embrenhou pelas montanhas de Minas, não tínhamos ouvido falar mais dela. Sabemos que estava ansiosa pois o pequeno monstrinho da Duvida deixou seus sentimentos dispersos. Ela pensava na melhor amiga, mas não sentia aquela atração que teve por exemplo, pelo seu ex-terapeuta, alguma coisa além das borboletas na barriga, alguma coisa que mexia com seu sexo e com sua cabeça ao mesmo tempo. Para chegar ao seu novo destino, decidiu que iria conhecer um lugar diferente, que ela ouvia muito falar por casos de magias, bruxas, uma pedra gigante que era pista de pouso para naves alienígenas e uma comunidade alternativa. “Não vou virar hippie!” Dissse a tia Helen pelo celular. “Quero ir a São Tomé por que conheci alguns colegas que falaram muito bem desse lugar, está chegando o ano novo, então acho que vou para lá ver o que acontece tudo bem?” Era uma pergunta retórica, mesmo que a tia dissesse que não, ela faria assim mesmo essa viagem. “Sim tia, vou tomar muito cuidado.” Preocupações à parte Sara pegou um ônibus que a deixou em Volta Redonda, ainda no estado carioca para pegar uma carona por um desses aplicativos modernos. Agendou com o motorista e soube pelo próprio app que ela teria companhia de mais 2 pessoas além do próprio condutor.

Vieram conversando bastante pelo trajeto, a motorista era uma mulher por volta de seus 25 anos, e viajava de férias com o namorado. Iriam para Varginha, uma cidade que fica depois de São Tomé das Letras, rota de Sara, portanto poderiam deixá-la bem próxima desse lugar passando por cidadezinhas como Pouso Alto, São Lourenço e Caxambu, todas já no estado de Minas Gerais. Dali pegou uma van que chegou por volta das 17hs em São Tomé, e ela foi procurar o hostel que havia também agendado através de um aplicativo de acomodações baratas. “Como minha tia me orientou, vou usar a grana como se não a tivesse!” pensou ao falar com o recepcionista programando sua estada para 2 noites. Caso fosse tão legal quanto parecia, ficaria mais dias, porém seu interesse era a virada de 31 para o dia primeiro de janeiro.

E a magia aconteceu na manhã seguinte, não do jeito que ela imaginou, aliás nunca é do jeito que fantasiamos. Subiu no teto de pedra da casa da bruxa e fumou um baseado com pessoas amigas que fez pelo caminho. Comeram um brigadeiro enfeitiçado, foi o que vendedora disse, uma garota hippie com trancinhas cheias de fitas e uma roupa muito colorida com flores diversas. E ficaram ali papeando até o meio dia, quando a barriga revirou e o estômago pediu por comida. Ela havia acordado cedo e tido um café da manhã típico das cidades mineiras, recheado de café, doces, bolos e sucos. Passeou por trilhas ingrimes até uma cachoeira linda, onde nadou meio timida pela presença de tantas pessoas ali. Agora junto com mais 3 colegas que havia feito no hostel, iriam compartilhar um assado de porco banhado em vinho com suco de abacaxi e hortelã geladinho.

A noite se aproximava e depois de fazer um passeio pelo pequeno centro, tradicional das cidadezinhas onde tem a praça central, a igreja da matriz e o comércio em volta. As lojas estavam cheias de turistas comprando filtros de sonhos, peças decorativas feitas de cerâmica, e camisetas “estive em São Tomé e vi a bruxa”, coisas assim. Os hippies estavam espalhados vendendo suas bugigangas e outros tocando violão e instrumentos de sopro que imitavam passarinhos. Estavam sempre com uma aura tranquila e um sorriso largo no rosto. Sara deu atenção a algumas pessoas que ela sentia curiosidade de conversar, de saber mais daquele outro tipo de vida, algo que ela nunca tinha visto ou vivido tão de perto, já que seus pais quando vivos eram empresários e sem tempo para viagens ou qualquer outro programa com a garota. Não lhe faltava nada de material, tinha o celular mais moderno, o notebook da apple, roupas e sapatos, e claro, seus pais a amavam, mas o contato físico era pouco devido a esse tempo mal aproveitado entre eles. Era disso que ela mais sentia falta, e era um dos motivos mais fortes que a levaram a viajar. Na bolsa carregava sua carteira, e dentro dela uma foto dos 3 juntos, ela devia ter uns 10 anos na época, estavam pousando de costas para o mar, aquelas caras felizes. Essa foto a fazia lembrar como foi legal aquela viagem, como era bom ter pais tão generosos como os seus. Iria aproveitar todo dinheiro que havia recebido para viajar com “eles” e por eles.

Depois de tomar um banho e se aprontar com um vestido branco e liso, com renda na altura dos joelhos, saiu para encontrar suas novas amigas e juntas irem curtir o reveillon pitoresco de São Tomé. Uma delas carregava duas garrafas de vinho dentro da mochila, e a outra armou 2 baseados que havia conseguido de um hippie. Esse ao vender o cachimbo disse a elas que já tinha ganho o dia e que não iria mais trabalhar. Elas pagaram 25 reais no objeto, e Sara teve esse vislumbre de como podemos viver bem e felizes com tão pouco. “Menos preocupações” ela perguntou e ele complementou dizendo que necessitava apenas de um dinheiro para comer e dormir, por que amanhã era outro dia.

Então dançaram ao som de músicas mineiras, de músicas internacionais, na praça junto de outras tantas pessoas que ali estavam para o festejo. E ao dar meia noite, elas fizeram um combinado no mínimo curioso, dançaram em volta da mochila para estarem sempre viajando, para as portas mágicas de São Tomé que diziam as lendas, era conectada através de um portal com Machu Picchu no Peru. Foi uma viagem enriquecedora, ali começou a aprender sobre desapego, sobre solidão e estar sozinha, sobre oportunidades que surgem se saímos da zona de conforto, sobre viver de maneiras distintas que são tão boas quanto aquelas que Sara acompanhava nos seriados televisivos. Paixão a acompanhou o tempo inteiro, e ela decidiu ir conhecer a comunidade alternativa, mas só iria depois de deleitar-se com aquele jovem hippie com seus dreads longos em mais algumas cachoeiras e trilhas locais.

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Metaliteratura…

Ao redor de uma antiga e aconchegante lareira, aquelas três pessoas compartilhavam de forma entusiasmada, algumas guloseimas e sucos, histórias de mil sabores diferentes. A pequena sala tinha um sofá xadrez bem judiado pelo passar dos anos, e lá estava sentado o mais velho. Iluminado por uma fraca luz de um lampião, estaria por volta de seus 82 anos, “humanos”. A cabeça com pouco cabelo, e os que sobravam eram brancos e brilhantes. Continuava usando um gorro, não era mais aquele lá de outrora, o que fez desse senhor uma lenda quando jovem. “Ou se não, pelo menos participou de uma boa história”, como ele mesmo adorava mencionar.

Contava entre uma baforada e outra de um fumo no cachimbo que durava horas, e que deixava o senhor mais relaxado para contar os “causos” de piratas daquela parte de onde moravam. “Estou aqui a vida inteira, só sai para ir para dentro do mar.” Bateu as cinzas na beirada da cômoda esculpida por ele em madeira bruta. “Não conheço outras terras, mas tenho uma história linda para contar. Começou com tragédias e guerras, e terminou num grande amor, ou pelo menos de minha parte. Eu acredito que aprendi a amá-la por tolerância. Tornei-me cúmplice e procurei entender o lado delas na situação.” Éramos assim também, seres humanos nos achamos racionais por que criamos leis que limitaram nossos extintos. Sentimos fome e vamos ao mercado, mas e se… Comecei a caçar por ela, e a gostar de fazer isso, por que as guerras pararam. Pode parecer loucura, mas no reino animal, os mais velhos se retiram de cena, eles sabem que irão morrer e procuram ir para lugares onde vão fazer sua passagem numa boa. Os doentes bem, vão mais rápido que os sadios, e quem não irá? Se as sereias não comem, elas não podem continuar existindo, é uma lei de sobrevivência que vale para qualquer ser na terra, inclusive nós mesmo. Continuamos matando, mas criamos coisas que façam a dor dos animais serem apaziguadas, vai entender.

O velho pigarreou e voltou a por o novo gorro. Apontou para o outro ainda pendurado solitário no alto de um cabideiro de madeira entalhado pelas suas próprias mãos. A prova do que eu falo pra vocês jovens, é a mais pura verdade. Sentada num tapete grosso e felpudo, a menina estava fascinada, suas pintinhas no rosto eram parecidas com as do velho, e usava uma coisa de metal na boca, para acertar alguns dentes. Ela falava engraçado por conta disso. Estava por volta dos 13 anos e era prima em primeiro grau do garoto. Ele era um ano mais novo, e era muito agitado também. Compartilhava o tapete com ela, usando almofadas de um tecido macio e liso. Era ali naquele ambiente contemplativo onde apenas as histórias de seu avô o deixavam quieto por mais de uma hora. Aliás, quando o senhor marujo Buk “Quatro Olhos” sentava para falar, era bem mais legal que ver qualquer filme de terror, romance ou ação de hoje em dia. Imagina os idos de 1720 e alguma coisa, um homem calvo, com muitas rugas na face e cicatrizes pelo corpo que contavam aventuras que eles estudavam em seus livros de escola. Descrevia com detalhes ricos essas situações incertas que havia vivido com a idade aproximada das deles. “Eu era um pouco mais velho que você Anita.” Embaralhou o cabelo dela com a mão. “E você homenzinho, ele tirou o pito da boca, pode comprovar essas histórias agora comendo as delícias feitas por sua avó.”

Serena não envelhecera nada, aliás estava “humana” e muito linda. Vestia um traje longo e escuro e os cabelos acompanhavam, ondulantes pintados como sempre com algumas mechas de cores extravagantes. Dessa vez eram roxas e verdes. Ela estava de costas para os três e misturava algumas coisas numa velha panela de ferro. De vez em quando olhava de esgueira para Buk e tinha uma paixão forte ali. “Era para eu ter te manipulado garoto. Era para eu ter acabado com você há tempos. Mas não o fiz. Ainda não sei bem o por que, vi você envelhecer ao meu lado com minha decisão de mantê-lo. E agora sinto uma falta grande e nem se foi ainda. Como isso pôde acontecer?”

 

Ex-namoradas…

Então você é aquilo que você se lembra, aquilo que fez sua caminhada até os dias de hoje e procura em cada pedacinho, em cantos remotos da sua cabeça as memórias mais profundas sobre pessoas e fatos, aqueles que te marcaram mais positivamente. O que você anda fazendo da sua vida agora tem mesmo haver com o que você fez no passado? Estamos aqui por expiação, pelo que fizemos em “vidas passadas” e ainda tem os erros e as escolhas mal feitas de agora, pela falta de experiência ou de entender uma orientação dos mais velhos quando nos dizem “não faça isso que vai dar problema”. E quando você perceber, deu mesmo; um grande problemão que não tem solução, a não ser cicatrizar como um machucado, apenas o tempo faz isso por você, e não… não apaga, a cicatriz é uma marca para te lembrar justo dessas suas “merdinhas” vividas.

Me recordo de um filme muito legal com o John Cusack e a Caterina Zeta Jones, baseado num livro homônimo chamado em português de “Alta Fidelidade”, onde ele procura as ex-namoradas para entender por que seu namoro atual vai de mal a pior… E você olha pra trás e pensa, cara o que vivi com tal pessoa fez o que sou hoje por conta de traumas afins, ou ter uma atitude assim ou assado por que com aquele infeliz relacionamento você teve um impacto negativo e então pela dor que aquela marca provoca é melhor não repetir, por que sabe que vai ser ruim demais. Mas e se não fosse, e se não vivêssemos pensando no que foi e no que será, por que não pode ser sempre bom? Utopia à parte, sermos seres que aceitam de forma tão passiva as intempéries da vida que não é nada fácil, até por que não escolhemos como é o “viver hoje”, tem muita gente só fazendo coisas e ninguém sabe o motivo ou questiona um.

No meio de tanta bagunça a internet que veio para provocar, questionar, apaziguar, alienar. Também produz caos nos relacionamentos e de vez em quando, ajuda a tranquilizar. Você revê fotos das pessoas, algumas são bacanas, você vai lembrar de histórias boas e histórias ruins, e no fim um clique na cabeça e bam, suas escolhas não foram tão insatisfatórias assim. Não se arrepender é difícil, não pensar que está dando um passo para trás ou que teve tantas oportunidades que outros matariam para ter e jogou tudo para o alto para simplesmente viver dia após dia, e olhar para esse passado só reforça que sim, a bagagem que adquirimos nos mostra quais erros podemos evitar se fizermos alguns tipos de escolhas. Não é prever o futuro, muito menos mágica, não funciona assim, porém nos deixa mais cabreiro, mais alerta, mais defensivo.

No entanto não se compara cara, não veja a vida de outros, incluindo de “seus passados” achando que fez tantas escolhas erradas, que está mal perante a esse passado. O conhecimento adquirido da estrada é uma escolha tão difícil quanto aqueles que escolhem ser gado sem questionar, o bendito e maldito ditado “a ignorância é uma benção”. Então se apaixona de novo, conhece um novo amor, há muitas pessoas, são muitas chances, muito mais que você imagina, basta sair de casa, tirar a bunda do sofá e se jogar sem medo de ser feliz. Vai que vai meu velho, vai em frente por que ainda tem  um tempo para viver nessa terra louca com os humanos mais loucos ainda, e se não for para ser bom, então para que serve mesmo?

Marionete

Era mais um dia como outro qualquer. Fez um sol de rachar os ossos da cabeça pela manhã, porém durante a passagem foi ficando mais ameno, e ao final da tarde, com o céu coberto de nuvens roxas e lilás, o sol se pôs atrás daquelas montanhas de pedra e Buk sabia que elas estavam lá ao longe, só lhe observando. E como ele poderia saber de tal coisa, foi a pergunta que o Capitão lhe fez repetidas vezes e o garoto só conseguia ouvir aquele som bem baixinho dentro da sua cabeça. Ele acordou como em qualquer outro dia, teve um café da manhã proveitoso, coisa que não era muito comum e após uma breve entrevista forçada pelo oficial, foi deixado em sua cela. Porém não ficou lá por muito tempo, além de atacar o guarda que estava com as chaves do Quinto Quartel, Buk não sabia como seu corpo agia da forma que agia, no entanto não tinha mais domínio sobre suas mãos, braços, pernas e pés. Ele ouvia alguma coisa que não sabia o que era, no entanto obedecia e conseguiu executar movimentos dançantes para acabar com boa parte da tropa do Capitão e ainda sair ileso.

Apesar de ele gritar que não era ele quem estava fazendo aquilo, não soube explicar para o Capitão o que aconteceu, seu corpo simplesmente parou e desfaleceu. Ao acordar no outro dia, a coisa se repetiu até que se viu só, nenhum guarda, nenhum oficial, nenhum faxineiro ou cozinheiro, ninguém mais estava de pé, pois Buk havia acabado com todos eles pelas ordens de sua mestra Serena, a bruxa-sereia. Ela queria vingança contra o jovem grumete, mas ao invés de acabar com sua vida, decidiu que ele faria uma bagunça no mundo dos homens.

E assim estava feito, agora na praia sentado com um galho em uma mão, desenhava qualquer coisa na areia, abraçando os joelhos com a outra mão. Se sentia triste, pois viu nos olhos do Capitão uma maldade humana, talvez tão ruim quanto a que tinha visto quando as bruxas atacaram os barcos em que estava por duas vezes. Mas maldades de homens davam mais medo por que era ali que ele vivia, naquele meio, com pessoas que aproveitavam umas das outras, de uma forma muito mesquinha. E elas, as bruxas em teoria, eram alucinações, não deveriam existir, portanto de forma racional, elas poderiam ser fadas mágicas criando feitiços de amor e paz. Mesmo assim, essa conexão com Serena estava atrapalhando seus julgamentos, e hora ou outra se pegava pensando em matar uns dois caboclos e arrastar para o mar para que as aberrações pudessem saciar sua fome.

Ao fugir não levou nenhum corpo, e procurou ficar escondido o máximo possível para que o Capitão ou a bruxa quando voltassem, não o encontrasse. O oficial havia saído para resolver problemas do governo, já se sabia que alguns ataques tinham sido infrutíferos, e duas tropas inteiras se perderam. A pequena população da cidade de El Flores onde ficava seu regimento, estavam apavorados. Ali também no palácio do governo, os ministros o pressionavam em busca de soluções para aquele infeliz problema. Ele teve que inventar mil histórias para livrar sua responsabilidade, mas agora tinha que dar um jeito, ele tinha que evitar novas arremetidas dos monstros e ainda oferecer segurança ao seus ministros e ao povo simples que viviam naquela costa norte do continente.

O mar estava tranquilo naquela noite, e era uma noite bem escura. Muitas nuvens cobriam o céu, deixando a lua quieta e sem brilho. Buk viu ao longe, se aproximando compassada, com tons cintilantes de verde e rosa, uma calda que surgia e afundava, provocando pequenas ondas no breu. Ouviu de novo dentro de sua cabeça, um uivo fraco e constante. E pensava estar ficando perturbado, já que durante os dois dias que se passaram, fez coisas que não sabia ser capaz de fazer, e não se lembrava de como, apenas agiu. “Estou indo meu servo, vamos acabar com essa história, é chegado o tempo das rainhas tomarem seus lugares.”

Estrada bifurcada…

Outra curtinha quando ele estava viajando e ela estava trabalhando. Isso aconteceu durante os primeiros dois anos, nos quais ainda se permitiam se ver com frequência. Depois de um breve almoço, ou um jantar de uma horinha, às vezes uma visita rápida ao estúdio onde ele ainda criava tatuagens, ela foi viajar, à trabalho. E ele passou pela cidade e ela não estava lá… Cada vez menos as mensagens eram trocadas, tanto quanto a importância momentânea que temos pras pessoas e vice-versa. Curioso por que depois ele esteve em outra cidade, a mesma em que ela sempre ia à trabalho, porém eles nunca se encontraram por lá. Pelos percursos e desencontros já estavam sabendo que ele ia para um lado e ela para outro.

Para longe…

Mais uma curtinha com ele e com ela, se viram muito rapidamente numa das passadas dele por São Paulo. Ela lhe disse que ele estava muito bem, e ele também lhe retribuiu o elogio. Durante o almoço conversas frívolas sobre o nada, sobre o trabalho, sobre a vida, sobre qualquer coisa, menos sobre outros amores. Ele sabia que ela estava com algum tipo de rolo, e ela também sabia que ele continuava solteiro. Em um dado momento chegaram a pensar em estar juntos de novo, mas passou como tudo passa. E então ele seguiu seu caminho e ela o dela, cada vez mais longe um do outro…

Só Amor…

Curtinha de amor, ela passava para lá e ele passava para cá. Tinha um monte delas nas ruas e um monte deles também. Em grandes centros de compra, em escolas e nos transportes públicos. Elas estavam lindas em restaurantes e em pistas de dança e eles estavam elegantes em bares de futebol e em parques públicos. Tantas pessoas, tantas possibilidades, tantos encontros, tantos amores vividos e não vividos, em tantos lugares mundo afora. 7.4 bilhões, é esse o número? Então dobre, melhor quadrupliquem esse número de interações e se perguntem, pra que tanta guerra com tantos possíveis amores?

“Fox” é um personagem…

Ah vamos parando por aí! Josias revirou suas fichas na mesa e retirou o boneco que representava seu personagem. Ele usava um boné para trás e seus enormes óculos redondos ampliavam as pintinhas em seu rosto. Os outros dois garotos que estavam à mesa ficaram se olhando confusos. O que é que foi agora cara? Paolo perguntou. Ele tinha pinta de jogador de basquete, uns 10 centímetros mais alto que seus amigos e aquele jeito gingado para falar. Era o dono da casa, o dono do tabuleiro e das peças também. Só não era dono de todos os dados, cada um dos garotos tinha o seu conjunto devidamente guardado em sacos de tecido como se fossem aqueles que os andarilhos medievais deviam usar para carregar suas coisas ou mesmo ouro. MJ ajeitou o cabelo escorrido que se dividia ao meio, colocando um outro pedaço do sanduíche que a mãe de Paolo havia preparado para a jogatina deles. Não está certo caras! Isso está virando uma aventura romântica! Os moleques riram. É sério! Já meio enfezado Josias devolveu seu personagem a mesa. “Fox Mãos Ligeiras” merece mais respeito. Participou de diversas aventuras, roubou tesouros de piratas e reis, saqueou o Cálice da Vida que era vigiado por nada mais nada menos que a lenda monstruosa, o Dragão Azul. E agora está apaixonado por uma princesa que se chama “Macia”? Aliás que raio de nome é esse MJ? Nessa história você está muito doido, colocando nomes “bobos” nos personagens fazendo a aventura ser um tanto chata não acha? O garoto havia terminado de comer o lanche todo e limpava sua boca na manga da camisa. Ah cara, não pira. Discutimos sobre isso antes de começarmos essa campanha. havíamos tido muitas aventuras, conquistado muitos tesouros e objetos sagrados, decidimos que precisava de humor lembra? Que estávamos sempre nessa de um plano de roubo aqui, de um esquema para sabotar uma guerra ali, enfrentando bestas mágicas e monstros afins. Acho que colocar uma guerra entre os reinos e a Princesa Macia ser o mote faz o jogo ficar diferente, e legal para mim! Paolo balançou a cabeça concordando e puxou o boné da cabeça de Josias ajeitando na sua. Fico mais legal com ele que você! Deu uma risada. Me devolve isso aqui! E puxou o boné de volta. Caras, você comanda um cavaleiro altruísta, forte e corajoso. MJ você é o mestre e tem esse personagem que protege a Princesa com segundas intenções, Sir. Althus Baishignon. Querem mesmo ter uma aventura em que o melhor personagem do jogo fica de nhém nhém com uma garota! Nessa idade ainda haviam garotos que não queriam saber de garotas, e vice-versa, ou ao menos fingiam não notá-las. Só no jogo diziam, quando usavam uma personagem feminina para ser salva. Paolo e MJ caíram na risada. Cara, “Fox” é legal mas não é o melhor personagem do jogo mesmo. O meu é muito mais legal. Paolo comandava um Lizard conhecido como Barrel, uma espécie de homem lagarto, tipo um bárbaro escamoso e muito mas muito forte mesmo. Já havia participado de algumas aventuras e mesmo sendo inimigo dos humanos havia se juntado a um outro bárbaro no estilo viking de barbas trançadas e longas, de nome Ravnar Longaxe e uma elfa rebelde, fugida de sua tribo e estudiosa das magias ocultas conhecida apenas como Noturna.

Os 3 ficaram discutindo durante horas sobre como a história poderiam prosseguir e tentavam fazer Josias entender a graça de jogarem uma aventura mais leve, depois de tantos combates ameaçadores para seus personagens. Eles estão em um nível bem alto agora, podemos fazer uma aventura mais simples, apenas para testar suas novas habilidades e depois voltamos a fazer uma aventura mais complicada. Disse Paolo, e hoje também minha vó vem me visitar, vai trazer uns doces deliciosos e portanto não poderemos jogar até muito tarde. Completou dando um gole no refrigerante que já estava sem gás.

***

“Fox Mãos Ligeiras” era um ladino nível 8. A despeito de ser da espécie Humana, tinha aprendido habilidades únicas de furtividade e de confundir os adversários fazendo-os brigar entre si. Se movia como um gato, silencioso e paciente, porém quando era necessário tinha uma boa agilidade tanto para escalar lugares complicados, escapar de tumultos e achar excelentes esconderijos. Apesar de sua índole, era um bom “chapa” como alguns o chamavam, pois ajudava sempre os desprovidos, fazendo pequenos serviços e doando parte de seus espólios. Não era muito forte, portanto evitava o combate corpo a corpo, sendo afoito a fugir de brigas que não lhe convinham. Encontrou com Barrel no final da tarde, aquela nuance com o início da noite, tons roxos e laranjas no céu. O homem-lagarto era difamado como “lagartixa” no início dessa empreitada. Para chegar ao nível 7 em que estava, foram duas guerras entre nações e uma entre espécies tribais. Tinha virado um “dinossauro”! Era muito forte, dez vezes mais que um humano mediano como ele já tinha sido para sua espécie. Agora Barrel estava muito grande e metia medo só pela sua presença e claro, aparência desagradável com aquela pele escamosa e babada com tons que variavam entre verde e marron. E ninguém entendeu ainda como se juntaram a pequena e valente Elfa. Noturna estava no nível 8 e isso para um de sua espécie tão jovem ainda é um complicador. Ela conhece muito dos feitiços, porém ainda não domina o suficiente para executar certas bruxarias. Conseguia controlar alguns, e em outros ela quase “botava a casa abaixo”. Era razoavelmente forte, e como os de sua raça possuia os cinco sentidos humanos muito mais aguçados, e mais uma espécie de sentido sensorial que conectava esses seres com elementais da natureza. Os mais velhos eram conhecidos por sua sabedoria incontestável, e Noturna ia pelo mesmo caminho, pois adorava aprender, conhecer e viver as experiências que a fuga de sua tribo havia lhe permitido. Esses três juntos viveram dezenas de aventuras, algumas que chegaram a durar meses. A mais famosa e que fez os três serem reconhecidos em vários mundos pelo feito inacreditável e para muitos, suicidas, conseguiram o Ovo do Dragão Azul. O famoso Cálice da Vida que segundo a lenda dará vida a um filhote que chegará a ser a maior chaga que nasceu no mundo de “Under the Dreams”, nome dado por Paolo e MJ para o lugar onde aconteciam as aventuras.

***

E ao chegar em casa, MJ cumprimentou os pais e foi direto para o quarto subindo as escadas de madeira que davam acesso ao corredor do andar de cima. Passou antes no banheiro, e depois entrando no quarto pulou na cadeira Presidente em frente o laptop e abriu a tela. Puxou no Wordtext um arquivo que continha 83 páginas, todas escritas sem nenhuma ilustração ou qualquer tipo de rabisco. Somente letras, muitas delas. Ele estava escrevendo a aventura maior, o que definiria seu mundo como um jogo oficial. O garoto tinha o sonho de publicar seu arquivo. Precisava dar um tempo e por isso criou aquela história água com açúcar, que poderia ser bem legal se Josias não fosse um trapalhão. A Princesa Macia iria ser o “cálice” dessa história. Tudo bem que não estava inspirado para os nomes, mas sabia que uma hora eles viriam e deixariam a coisa toda muito mais legal. Ela entraria para o jogo para salvar seu reino e unir todos com a derrocada do Duque Doce. Também iria trocar o nome do vilão. Estava tudo planejado e escrito no “Manual DO JOGO DE RPG “UNDER THE DREAMS” – VOLUME 1″, escrito em caixa alta na primeira página e no cabeçalho de cada folha até o final do documento.

Valores – Primeira Parte

 Para lembrar e aprender a dar valor ao alimento, ao tempo e a vida…

Existem diversas maneiras de se aprender contra o desperdício absurdo proposto pela sociedade de classe média burguesa com seus falantes sem atitudes. Aconteceram tantos episódios e era um tema muito recorrente, por que ele viu muitas pessoas tendo certos jeitos, que não sabia se teria coragem de fazer para ter alimento, e também aprendeu um montão com isso, desde como você realmente pode escolher suas frutas, verduras e legumes, até você saber “o que” daquele aspecto podre pode tirar de bom, e incrível, tira muita coisa! Ele detestava esse papo de sofrer pra aprender ou nos erros aprende mais, blá blá… Acreditava nas escolhas, e por mais que algumas deem merda, ele garantia que quando a gente escolhe se está pensando em um resultado positivo.

Essa história começa tarde da noite já num posto de gasolina desses de beira de estrada. Era bem madrugada acho que umas 2 horas. O lugar era bem grande, um pátio para caminhões esperando os monstros chegarem, e 2 funcionários e mais um “vigia” estavam no local. Quando perguntou se poderia acampar ali para tentar uma carona, o frentista lhe ofereceu um café, e um lugar para guardar a mochila, por que ali havia muito assalto e não dava para saber o que poderia ocorrer, sendo que na esquina era uma boca. De tempos em tempos passava um sujeito bêbado, falava qualquer coisa e ia embora. Foi uma noite relativamente tranquila, o lance era despistar o sono e a fome que vinha chegando tão lenta quanto essa carona confirmou ser. No meio da madrugada não conseguiu dormir, não achava lugar ou posição que o deixassem seguro, mas percebeu algo que achou engraçado, não tinha desconfiança nos frentistas do posto, muito pelo contrário. E além de amizade e palavras consoladoras de um deles que era devoto evangélico, ou pelo menos assim ele deveria achar que com aquela ladainha fazia uma boa ação, volte para jesus e doe sua cruz. Então desencanou da mochila, e como eles disseram mesmo, se esse lugar tem tanto assalto, “que me levem tudo” pensou, “já que não tenho nada comigo mesmo”. Era só a roupa do corpo, e o cara da cachaça veio. Estava muito louco e não controlava a fala. No entanto durante umas 2 horas de conversa, a gentileza dele lhe oferecer a comida pois o que ele queria era dinheiro pra cachaça. A marmita tinha frango assado, arroz e feijão preto (coisa de carioca). Contou da história da mãe, de quando estava preso e que havia entrado para a igreja e iria se converter para tomar um rumo na vida, trabalharia de pedreiro para começar, fazendo as paredes da própria casa.

A humildade vem junto, mas bem juntinho dos valores, aqueles que são morais e sociais, que nos diferenciam dos animais selvagens, e dos pets. Somos humanos por que em teoria sabemos discernir as atitudes boas das ruins.

Não é para pagar de gatão não, mas falamos mais do que agimos e acreditamos estar fazendo algo bom doando 20 reais pelo telefone para alguma associação, ONG ou afim. Ninguém dá as caras, vai lá ver como é e doa a grana para pelo menos, já que somos seres de natureza egoísta, sabermos quem são as pessoas que vão lidar com o “suado” dinheiro de fim de mês. A porrada é forte pra caramba, então você percebe que tem pouquíssimo tempo na real, que sei lá, se chegar aos 85, acho massa, mas não é nem um século, perto do que você lê ou ouve falar, de bilhões e bilhões de tantas bilhões de coisas por ai, e só temos isso de tempo pra curtir a porra toda e tá todo mundo, sei lá, enlouquecido? Chamaram ele de hippie, bandido e pobre… Caleja saca, você sente uma casca crescendo e você tá pronto pra se defender. Veja bem, com tanta gente pirada, o mínimo que se pode fazer num mundo louco como esse nosso é se proteger de alguma forma, não necessariamente pensando que vai ter de usar alguma arma ou algo assim, e torce pra que nunca mesmo, apesar que nunca também é uma medida de tempo, aquele que não entendemos e usamos com tanto desperdício…

Ah cara, no dia seguinte ele estava de pé bem cedo já tentando a carona na beira do acostamento de novo. Havia tomado um outro café, os frentistas, todos eles, cada um que voltava da cozinha, lhe trazia água ou café. Foi uma coisa especial, você pensa no dia a dia, nas correrias, nas negações das pessoas com aquelas que falamos que somos amigos. Complicado isso.

Passou 18 horas tentando carona sem nenhum sucesso. Alguns caminhoneiros que descansavam ali suas máquinas aproximavam para pegar água, e um ou outro puxava uma conversa e ele respondia na tentativa de conseguir alguém que o levasse dali. Apenas dois em dezenas falou que iriam ver alguma coisa. Mas não prometiam nada. Depois de uma quentinha paga pelos frentistas, passou a noite com as provocações do vigia que cheirava aquele pó nojento. E lhe infernizava falando que ele não poderia dormir aqui ou ali, quando um dos frentistas tinha dito até para ir tomar uma chuveirada. Poder de portaria de condomínio burguês, igual aos dados para os governantes. Outro valor, outro desperdício, mais um aprendizado de tempo. Ficar 3 dias sem banho e tomar um mesmo que gelado é mágico. A sensação de prazer iguala ao banho de cachoeira pela alegria que você sente no fundo da pele se limpando.

No outro dia ficou esperando aquele caminhoneiro que havia lhe prometido carona, apenas um no final das contas foi lá falar com ele. E as 10 horas da manhã estava em um trem indo em direção a capital paulista tentando entender as atitudes mesquinhas dos caminhoneiros (passou uns dias com raiva deles) e abençoando os frentistas e loucos de posto de gasolina de estrada.

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