Em plena “Era Moderna”…

Ele acabara de voltar para casa de uma entrevista de emprego. Ela estava ansiosa esperando na cozinha, já retirando duas cervejas geladas da geladeira para uma pequena celebração. Quando suas expressões se cruzaram a alegria dela sobrepujou o desânimo dele. Ele segurava uma pasta grande de couro no formato A3 debaixo do braço. Tem algumas tradições que não mudam, sempre igual. Entrevistas de emprego queriam ser modernas, queriam acompanhar a tecnologia, acreditando só por que existe um site ou um aplicativo que “ajuda” a arrumar o emprego seria uma solução para ele. Não era. Ela olhava para ele com orgulho, não importava o resultado negativo da entrevista, no entanto mais importante era quebrar os tabus. Lembrou-se do início dos anos 90 quando um jogador de futebol famoso apareceu usando uma saia grande. Aquilo para ele era demais. Imaginou que delícia sentir a brisa nas partes baixas. Ela o abraçou consolando-o, e então tiveram um pequeno debate sobre como se sentiam sendo homem e mulher, num mundo vivendo sob o machismo. E as relações de masculino e feminino avaliadas de formas diferentes com esse atraso mental, que em pleno século XXI ainda discutiam sobre a relação da nudez masculina e da nudez feminina…

Pode um elogio ter alguma intenção de cantada ou sei lá mais o que pensam sobre, podia ser só um elogio mesmo, por curtir a pessoa, o trampo, ou seja lá que porra fazem, qual o problema com o elogio?! Se for homem hoje em dia é quase um crime, ou é… Se é de uma mulher para uma mulher, viva o mundo moderno e o espaço das mulheres, mas se elas o fazem a um homem, serão o que? Ainda tem gente pensando que seriam assanhadas, que elas são ousadas e não mereceriam talvez, dependendo da profissão, um julgamento melhor. “Santo atraso mental!” Ele exclamou para ela. “Eu estou usando saia sim, um calor danado lá fora, e tem gente hoje pensando que eu deveria estar engravatado para ser um ser humano melhor… Sério?… A maioria das pessoas que encontramos na estrada”, ele comentou com ela, que concordou pois participava dessa experiência, “eram os mais humildes, os que nascem nos lugares considerados baixa-renda, ou comunidades, de pessoas mais rústicas, consideradas inclusive ignorantes pelos estudados das capitais”… Chamam de comunidades de pescadores, ou de caipiras, não importa, são muito mais “gente” que os de terninho risca-de-giz.

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A papisa

Conta a história da vida, que havia uma mulher de plena sabedoria que ficava sentada em seu trono em frente a um grande portal. Algumas pessoas que lhe pediam auxílio, o recebiam, de forma duvidosa, pois ninguém tinha certeza se queria mesmo atravessar o portal. Ela segurava um livro grande, com a capa adornada e com muitas e muitas páginas. Sempre que alguém chegava para se aconselhar, ela abria o livro, contava uma história, e fechava o livro. Os ensinamentos são longos, caminham por toda a vida. Não pode me perguntar algo que terá uma resposta direta, pois não existe o sim, não existe o não. Apenas a sua experiência que te levará através do portal.

Uma vez recebeu a visita de um jovem. Ele, um viajante, carregava uma trouxa em seu ombro e estava perdido segundo as pessoas que olhavam para ele. Suas roupas esfarrapadas, que não combinavam em nada, sugeriam que era um mendigo. Porém ele sempre falava, sou um andarilho, sou um viajante, estou em busca de algo, mas ainda não descobri o que… Foi assim que chegou até A Papisa. Ela lhe sorriu delicada, e abriu seu livro contando uma história de coragem, de força, no entanto como todas as outras, de duvidas que somente com paciência poderia-se superar. Como viajante ele não temia o desconhecido, havia visto muitas cidades, conversado com muitas pessoas. Passado por momentos que poderiam ser ditos mágicos, como quando estava sem nada para comer e surgiu aquele sujeito barbudo com uma metade de um prato. Ou quando fugiu de guardas após ele surrupiar o colar de uma jovem princesa, apenas pela aventura, apenas pelo desafio, apenas para olhar nos olhos dela e declarar seu amor… É claro que o colar foi devolvido, mas não me perguntem como pois isso é outra história. Então aquele sujeito ousaria passar pelo portal, ousaria ir além da zona de conforto.

Aquele papo sutil, com detalhes em ilação, instigou a curiosidade daquele jovem louco, que pediu licença a sabedoria daquela mulher. Ela somente o seguiu com o olhar, orgulhosa de ver que uma pessoa havia entendido, que para trespassar o portal, é preciso da sua paciência, porém é preciso ter a coragem de um louco também.

O Mago

As ruas daquele pequeno vilarejo estavam uma loucura. Pessoas levantando seus braços, mulheres falando alto batendo panelas e os homens, aqueles sujeitos troncudos com a raiva pulando de seus olhos vermelhos. Os dois agentes tentavam acalmar a turba, porém a confusão tinha sido armada. Um dos oficiais tirou um apito do bolso e fez o objeto soar mais alto que as vozes das pessoas. Todos prestaram atenção no mesmo momento, olhando para o policial:

_ Aquele malandro estava usando uma barba postiça. Vejam isso!

Ele abaixou e pegou a pelagem branca que estava jogando em um canto perto da taverna.

_ Mágico coisa nenhuma!

Protestaram alguns. Haviam sido enganados em um jogo simples, tinham que dar uma moeda para o velho sujeito, e este colocava o metal dentro de uma caneca. Na rústica mesa dobrável ele dispunha outras duas canecas, e assim, misturando tudo pedia ao “cliente” que escolhesse onde estaria a moeda. Se o sujeito acertasse o mago devolvia a moeda, senão…

_ Ele nos roubou!

Outros gritaram. Os dois homens da lei anotaram os nomes das pessoas que foram persuadidas no jogo e pediram paciência, pois iriam levar o caso ao delegado local para fazerem um busca pelos arredores. O esperto podia estar por ai ainda, visto que estava hospedado nos quartos de fundo da Taverna Curta, e pelos comentários talvez não tivesse tido tempo de fugir. Felizmente para aquele sujeito magrelo, que tinha uma habilidade incrível de se disfarçar, tirou a túnica roxa virando-a do outro lado e amarrou como uma trouxa e se fez de andarilho. Sem a barba e a peruca, seus cabelos loiros ficavam soltos e desgrenhados, e com o sorriso no rosto conseguiu ludibriar o dono do local saindo sem pagar nada.

Quando os oficiais chegaram ao lugar pelas pistas que haviam conseguido, já era tarde.

_ Aquele sujeitinho não era mágico, nem mago, nem coisa nenhuma se não um larápio de primeira. Não pagou pelas noites dormidas e ainda me levou uma das minhas melhores “garrafadas”.

A bebida que era tipo um elixir, dando mais vigor ao homem que a bebesse. Era dessa energia que o jovem “Fox Mãos Ligeiras” precisava para seguir para a próxima vila e quem sabe, enganar mais alguns indivíduos ingênuos para obter suas “recompensas”, que era como ele chamava o espólio que conseguia com seus truques. O Mago nessa época também era conhecido como o mágico, aquele que trapaceava pela velocidade das mãos e a ilusão de ótica, jogando cartas, dados ou com as moedas dos outros. Sorte ou azar, porém com sabedoria e criatividade. Dúbio como todas as cartas do tarot.

Capturado

Agora a coisa complicou. “Vem, precisamos fugir!” Olhos arregalados para todos os lados, seu braço magrelo naquela mão gigantesca levando-o por túneis debaixo da ilha. “Vamos para o continente. Trouxe você para minha casa por que achei que seria mais seguro. Eu estava no primeiro barco que foi atacado, não creio que se lembre de mim, já que não falou nada”. Buk “Quatro Olhos” mal tinha tempo de ajeitar seus óculos e só desviava dos barris e caixas que seguiam pelo caminho. “Chegamos a um bote que tenho para, enfim, esse momento.” Buk o encarou. “Eu sabia que um dia isso ia acontecer garoto. Estava lá naquele maldito navio, as bruxas-sereias atacaram, uma delas tentou fazer comigo o que a irmã fez contigo!” Buk usou de uma força que nem sabia que tinha e puxou seu braço com força. O homem assustado parou de correr e os dois ficaram se encarando por aquele momento lento e terrível que tornam as coisas mais dramáticas do que deveriam ser. “Ok te conto tudo mas precisamos alcançar logo o meu barco. Se não chegarmos ao continente, ela te pega!”

Nesse momento Buk falou algo que deixou aquele cara daquele tamanho bobo feito criancinha. A expressão de incredulidade em seu rosto, só teve coragem de perguntar o por que. “Eu não sei. Tenho sentido essa vontade sabe…” Parou de falar e abaixou os olhos. O sujeito afagou o ombro de Buk e falou para continuarem lá fora. Chegaram ao barco. “E a garota que estava cuidando de mim?” Buk perguntou. “É minha filha.” Ele respondeu. Desamarrou a corda e empurrou com força o pequeno monte de tábuas água adentro. Somente um remo e um balde enferrujado de metal. “Talvez eu devesse ter cuidado melhor dele”. Buk estava amedrontado ali dentro. “Mas de verdade não pensei que aconteceria, apenas no dia em que subi naquele maldito navio para fazermos a caçada e levamos aquele choque é que as coisas mudaram…” Agora ele era quem abaixava os olhos. “Eu devia ter precavido melhor.” Buk se ajeitou na tábua que fazia de banco, e sentou-se. “Ela não corre perigo?” O homem levantou a cabeça e puxou o remo pro seu lado. “Uma mulher sabe lidar com uma mulher. Mesmo que ela seja metade peixe.” E Buk completou no pensamento, ainda assim era uma mulher.

No entanto uma bruxa-sereia não se considerava nem humana, nem outro ser que não algo superior a espécie humana. Serena destruiu o casebre e a filha daquele homenzarrão não sobreviveria para cuidar de seu velho pai. Ela saiu na forma humana de dentro da casa e olhou para o oceano. Pôde ver ao longe a minúscula imagem da embarcação, com os dois sujeitos lá dentro, remando desesperadamente. Ela sorriu de esguelha. “Esse jogo de gato e rato, começa a ficar mais interessante…” Voltou ao mar e assumiu sua verdadeira forma. Sua calda brilhava mais ainda, ela queria mostrar que os perseguia, que o que eles enfrentariam era como um desses bichos que emitem luz para avisar que são perigosos.

Buk sentiu um puxão na barriga. Olhou para o sujeito, nem haviam se apresentado, toda aquela correria e não teve tempo de tirar as mil dúvidas que rondavam sua vida, desde o fatídico primeiro ataque. “Eu acho que ela me possui…” Falou quase sussurrando e sentiram uma batida no fundo do barco. Os olhos deles ficaram alertas, o fulano levantou o remo para dar um golpe e deixou o braço descer com força na água, espirrando para todo lado o líquido salgado do oceano. Buk recuou e foi agarrado pelas costas. O movimento imprudente do grandalhão fez a água se agitar e a bruxa teve tempo de subir junto com o estouro da água, o homem não foi rápido o suficiente e Buk já estava no mar com a sereia olhando feroz para ele. “Não adianta fugir meu jovem, já te disse, você é meu!” Ela soltou o garoto e mergulhou. “Me ajude, me ajude!” Buk gritou em desespero mas só pode ver o barco receber uma, duas batidas e virar com aquele homem gigante caindo na água. A sereia saltou, deu uma piscadinha para Buk e voltou a afundar dando batidas fortes com a cauda. Estava acabado. Ele alcançou o barco virado para apoiar e ficou procurando pelo próximo movimento. Curiosamente a água em seu entorno ficou quieta. Nada se movia. A noite escura, a lua abafada pelas nuvens, ele não ouvia nem via mais nada.

O Louco

A velha cigana tirou a carta. Colocou lentamente sobre a mesa virando-a para o sujeito magrelo e cabelo desgrenhado sentado à frente dela. Os mistérios da vida, respostas que não temos, mas que dependendo de quem e de suas crenças, fazem aquele oráculo ter poder, e não raro funcionar.

_ Essa carta dita impulsividade. Conta a história que um sujeito de seus vinte e poucos anos que morava em uma pequena vila onde as pessoas acordavam bem cedo para fazerem suas tarefas diárias. Ele não acompanhava esse ritmo. Apesar de ajudar sua mãe com os afazeres domésticos, sempre falava de outras terras e outros mundos. Aquela senhorinha espantada ao mesmo tempo que se orgulhava do pequeno ter aprendido a ler sozinho, ela nem sabia como ele arrumava os livros, tinha medo daquilo pois sabia que eram nesses mesmos livros que ele tinha aprendido que havia mais no mundo do que estava ali, naquela pequena roça, naquelas tarefas rotineiras.

A senhora pigarreou esperando alguma pergunta que não veio. Ela continuou a história:

_ Quando ele fez vinte e cinco anos, já era tomado por louco pelos habitantes do lugarejo. Ele bebia muito, paquerava todas as jovens ao mesmo tempo, e se divertia com a música de seu bandolim. Por não ter um emprego formal, algumas pessoas também o chamavam de vagabundo. Porém ele não se importava nem um pouco, continuava levando sua vida numa boa, diferente dos outros que passavam dias rudes por conta dos trabalhos pesados dessa época. Um dia ele se cansou, juntou uma trouxa de roupas, colocou uns sanduíches dentro e junto de seu pequeno cachorro resolveu pegar estrada. A cada cidadezinha que visitava, continuava fazendo as mesmas coisas, tocava seu instrumento, ganhava as moedas por contas histórias fictícias e comprava cerveja quente. Bebia até cair e no dia seguinte, ao levantar, mirava a estrada e seguia. Era tachado de andarilho, era conhecido por inconsequente, ele era o louco.

O sujeito então puxou um saco de moedas, deixou algumas sobre a mesa da velha, pegou sua trouxa e saiu da tenda sem falar nada. Assobiou e o cachorro que era seu companheiro de estrada veio feliz.

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