Cara, o que está acontecendo? Ele perguntou para aquela mulher que também se escondia junto dele atrás daquele enorme “container” de lixo. Ela estava com o rosto deformado pelo pavor e entre soluços tentou falar alguma coisa, porém não saiu nada de sua boca. “Finalmente o caos” ele pensou se encolhendo entre os joelhos. Os dois ficaram ali por um bom tempo, não souberam o quanto, porém o calor de seus corpos os confortavam em meio aos barulhos cataclísmicos que se seguiram durante aquele longo dia. Era o primeiro dia do que ele chamava de “caos total”, e é por isso que quando acontecem os desastres da humanidade passam a nomear esse instante de “marco zero”. Existem diversos espalhados pela história humana, pelo menos é o que contam os livros de história, ou os velhos matutos do interior que propagavam em lendas as tragédias dos humanos. Nesse dia, tentem imaginar tudo o que pode acontecer de pior em uma sociedade que se considera civilizada, aconteceu, só que em proporções colossais. O ser humano quando acuado é o pior de todos os animais. Já o é por tentar controlar seus instintos básicos, como outros animais que não os controlam, copulam e caçam, matam pela necessidade de comer e para continuar com sua linhagem, em teoria os melhores genes para que sua espécie continue. No entanto no campo humano, isso é a coisa mais estúpida, pois cerceavam nossa liberdade criando crenças e regras que parece ter só aumentado a profusão de ruindade que podemos cometer uns contra os outros. Não só por comida, ou por procriação, mas pelo prazer de ser “do mau”. A coisa toda se torna um embaraço maior quando se tem essa sede de poder, essa necessidade de acreditar que é melhor que o outro e que tem que estar por cima, sabendo-se lá o que quer que isso signifique.
Aonde estavam escondidos podiam ouvir os gritos alarmados e os gritos sufocados. Podiam sentir o chão tremer com explosões e seus corpos tremiam pois sentiam pela energia que ali chegava, que corpos estavam sendo mutilados, que pessoas atacavam pessoas, e que se você acha que sua vida é cagada, imagina quem teve que fugir das guerras, quem nasceu com problemas físicos e depende de aparelhos para “viver”, ou quem era considerado saudável e de repente um desajuste o tornou um insano patético que cisma em querer governar e ter tudo somente para si. Não era isso que ele tinha imaginado sobre o caos. Vendo e lendo tantas coisas aquele respeito, teve a ingenuidade de acreditar que apenas os mercados estariam disponíveis e que seria fácil ir lá pegar qualquer coisa para levar uma vida que teria um tempo infinito para ser vivida. Claro que não foi assim, e claro, também não era como livros e filmes. Não havia paixão em ser um vagabundo de estrada. Metade de uma população gigantesca, eram oito bilhões de seres humanos até então foi varrida pelo seu próprio egoísmo. Eles simplesmente não sabiam se virar, não sabiam como sobreviver, eram fracos fisicamente e mentalmente, morreram de estafa, de apatia, de pobreza interior. De qualquer forma, se foi sorte ou sabe se lá o motivo, os dois se encontravam ali diante de algo que não conseguiam entender, muito menos explicar, e teriam que lidar com as consequências de atos que em teoria, não tinham tido nenhuma culpa direta.
Ela perguntou o nome dele, foi a primeira coisa que fez quando conseguiu sair do choque e sentir que seu corpo estava descansando. A confiança começa com o nome, se você sabe o da outra pessoa, dificilmente irá atacá-la, ou esperar que te ataquem, já que a intimidade teve início assim. Ele respondeu e perguntou o dela… “gostaria de falar que é um prazer te conhecer, porém quem sabe, em breve…” Ele continuou com seus pensamentos flutuando. O que iria fazer agora, não haviam mais obrigações cotidianas, não havia emprego, relógios com calendários a cumprir, e nem metas absurdas que eram criticadas, mas seguidas por pessoas sem nenhum tipo de questionamento. “A humanidade acabou…” Ele pensou consigo e perguntou a ela o que estaria pensando, se tinha família ou a quem procurar, e o que fazia antes de tudo isso acontecer. Os barulhos continuavam cada vez mais intensos, e assustada eles conversaram logo o que podiam até o momento que tiveram de decidir. “Como vamos seguir em frente, você quer vir comigo?” Ela o olhou vazia, a boca semicerrada, as lágrimas jorrando pela face e as mãos trêmulas. “Não sei…” Respondeu de um jeito vago, como seu próprio peito. “Eu não tenho mais ninguém, nunca tive…” Ele olhou para ela apertado. Os sentimentos são praticamente sem controle, e ele não evitou demonstrar compaixão e tristeza, mesmo sabendo que tudo havia ido para os ares, ainda assim, sentiu um leve compadecimento por ela e esticou seus braços para tocá-la. Ela recuou, e ele sem graça repetiu o gesto recuando também.”Me desculpe, não quero me aproveitar da situação…” Aliás, como aproveitar qualquer coisa com o mundo desabando literalmente ao seu lado?
Sem linhas telefônicas, sem internet, sem notícias e com todo o escarcéu acontecendo os dois só tinham ali, naquele instante um ao outro, e a ideia de que precisavam sobreviver, pois o instinto de “vida” nos obriga a isso (diz a ciência que o corpo luta o tempo inteiro contra doenças, velhice, inaptidões. Que as células se renovam e fazem isso constantemente não importando a sua idade, uma luta eterna para se manterem vivas), tiveram que segurar as pontas, e planejar minimamente a sobrevivência para o próximo dia, se é que aconteceria. De esguelha ela viu que um batalhão de choque com policiais armados até os dentes destroçavam um grupo enorme de civis, também armados, que lhes devolviam na mesma fúria a investida. Voltou a recostar e chorou copiosamente. Ele tentou acalmá-la colocando de leve os dedos em seus cabelos. “Nós precisamos sair daqui, precisamos achar um lugar para nos escondermos”. Ela levantou a cabeça e concordou com ele limpando o nariz na manga da camisa. Quando tudo mais não existe, quando não há saída do inferno, para onde ir, o que fazer. Eram tantas perguntas que só poderiam ser respondidas se tivesse tempo para fazê-las e isso era algo que não tinham.
Funcionava mais ou menos como os ratos de laboratório que precisam achar a saída do labirinto. As opções são muitas, e cada caminho em particular apresentava seus desafios a serem batidos. Primeiro os dois tinham que achar abrigo, e a partir dai poderiam ver o que seria feito. Poderiam tentar ter alguma notícia, entender o que estava acontecendo para saber que caminho seguir. “Não tenho mais casa…” ela tinha lhe dito. Ele pensou no pequeno apartamento que havia acabado de pagar a última prestação, a tão sonhada casa própria. Outra ilusão social passada de geração para geração, como um refugo de segurança para a existência. “Eu também não…” Ele soltou e ela em desespero o abraçou tão forte que se fosse em outro contexto poderia-se dizer que eram um casal bastante apaixonado. Infelizmente não era. Não era um conto de fadas, nem um daqueles filmes piegas que pregam uma moral inexistente ou finais de “felizes para sempre”. Não existe para sempre, não existe só ser feliz. É todos os dias, dia a dia, uma por vez, instante por instante, vivendo suas escolhas e assumindo seus atos, procurando que sejam sempre bons pois irão passar. E então, é como se alimentar, conhece alguém que come algo ruim e quer repetir? Não né, contudo ainda assim, tem café da manhã, almoço e janta, fora os “beliscos” diários. Imagina, tem que ser bom. Ele pensava de novo ingenuamente e vendo os brilhos das explosões acompanhados daquelas sinfonias de terror, resolveu que não havia nada para fazer, a não ser assistir a tudo deliberadamente.
Ele desligou a TV pois ela estava cochilando no sofá. Ele a cobriu, deu um suave beijo em seu rosto e lhe fez uma promessa que nunca poderia cumprir. Fim.